O Racismo em Nós!
O Racismo em Nós!
Realmente acredito que ninguém nasce racista, acredito que desde crianças percebemos as diferenças que há entre pessoas: alguns são altos, outros baixos, alguns têm a voz mais aguda e outras, mais grave. Perceber as diferenças faz parte do desenvolvimento cognitivo do ser humano. No entanto, a forma como irá significar essas diferenças será atribuída pelo contexto em que a criança está inserida. E, essa significação é apreendida, não apenas pelo que é falado, ensinado de forma intencional, mas sobretudo por nossos neurônios espelhos.
Os neurônios denominados de espelho possibilitam a compreensão da ação e/ou da intenção de outro animal pela ativação subliminar desta ação nos circuitos fronto-parietais, ou seja, ao ser exposto a uma situação, ocorre a ativação de áreas cerebrais similares às da pessoa que executa uma ação. De forma simples: quando o pai trata de forma educada e amorosa a esposa, o filho por estar presente terá as mesmas áreas neurológica ativadas no cérebro do pai. Estes neurônios estão envolvidos com a origem da linguagem humana.
Dessa maneira, podemos pensar que uma criança branca, que conviva somente com pessoas brancas pode, inicialmente, estranhar ou se surpreender no primeiro contato com uma pessoa negra, o mesmo pode acontecer numa família africana, ou seja, não há um julgamento neste momento, mas uma reação ao que não é familiar. O que irá criar bases para atitudes futuras são as reações dos adultos diante dessa diferença naquele momento, e posteriormente.
De maneira clara e simples: se uma criança percebe em seu ambiente que as pessoas de pele clara são mais receptivas a outras pessoas de pele clara e que há uma mudança na forma de agir com pessoas negras, ela pode começar, de forma rudimentar, a construir a base do racismo, pois irá construir as sensações que a levem a repetir essa atitude. Os neurônios espelhos, quando ativados pela observação de uma ação, permitem que o significado da mesma seja compreendido automaticamente (de modo pré-atencional). Ou seja, a ação pode ou não ser compreendidas conscientemente, criando memórias de sensações que podem gerar a sensação futura de que sempre foi dessa maneira, possibilitando a naturalização das atitudes de evitamento ou de desvalorização, por exemplo.
A compreensão dos mecanismos de socialização humana, bem como da construção da capacidade de comunicação advinda dos conhecimentos da neurociência, não deve servir para justificar as atitudes de racismo ou de qualquer forma de preconceito. Deve, sim, proporcionar à sociedade a clareza sobre o caminho a ser adotado para superarmos essas atitudes que causam tanto sofrimento e injustiça. Ao compreender como acontece o processo de socialização no âmbito neurológico, é possível modificar, melhorar e humanizar a forma de lidarmos com as diferenças.
É por meio do comportamento social que as crianças poderão compreender que as diferenças não são conceitos que podem ser compreendidos e encaixados nas categorias de mais ou menos, mas apenas de diferenças. Afinal se nossas crianças são humanizadas pelos cuidados e relações estabelecidas e, neste milênio temos conhecimentos inclusive de como isso ocorrer neurologicamente, temos todas as condições para modificar essa relação.
Vejo como positivo e desejável que filmes estejam revendo sua forma de apresentar seus heróis e princesas, e percebo que a reação de resistência de muitos demonstra a necessidade de continuar esse processo. Lembro de ter me emocionado com a grandiosidade do filme Pantera Negra (fevereiro, 2018), pelo protagonismo dos negros e, sobretudo, das mulheres negras, fortes, belas e imponentes, como isso é fundamental para as meninas negras, elas se verem neste lugar, construir as bases neurológicas dessa representação. Outra cena que me emocionou e me fez ter esperança de um dia não ser mais necessário lutarmos para superar toda forma de racismo que prepondera nos meios sociais e midiáticos, foi ver o filme do filme Os Vingadores: Ultimato (2019). Independente das razões que serão usadas para os filmes posteriores, o que ficará marcado para todos que o assistiram, será a cena do Capitão América, branco, entregando o escudo para o Falcão, um homem negro, simbolicamente dizendo que a América pode ter um Capitão América Negro, os meninos negros terão essa representação em suas mentes, que rompe com o que foi repetidamente reproduzido, que os super-heróis são na sua maioria arrebatadora brancos. E, os meninos brancos também terão essa representação diferente de muitos outros, atualmente. No futuro não mais terão nem sequer necessidade de questionar diferentes heróis.
A descoberta da existência e da forma de funcionamento dos neurônios espelho permitiram que fossem identificadas várias modalidades do comportamento humano relacionadas com sua função, como: imitação, teoria da mente, aprendizado de novas habilidades e leitura da intenção em outros humanos (Gallese, 2005; Rizzolatti, Fogassi, & Gallese, 2006). Então, é possível agora abandonarmos o medo de assumir nossas atitudes e pensamentos racistas, preconceituosos e considerar que esta forma de pensar e agir pode ser o reflexo de uma aprendizagem de formas de agir da sociedade que nos rodeia, até mesmo de forma inconsciente, mas que pode ser modificada, transformada pela capacidade de reflexão e escolha que todo ser humano adulto pode exercer sobre sua vida.
Sou branca, na minha genética há descendências italiana, austríaca, espanhola, isso até onde sei, no entanto é pura ilusão acreditar que a cor da minha pele e dos meus olhos indicam que sou uma pura descendente europeia, exames genéticos surpreendem as pessoas com a variabilidade genética de cromossomos. Desde criança fui reconhecida como branca, aliás muito branca, e convivi com uma família que expressava seu racismo de forma cotidiana e agressiva, mesmo que não percebesse isso. Lembro da minha Nona (avó) materna que tinha a seguinte frase: “...bona gente, pena brasiliano” – Boa pessoa, mas que pena que é negra. Isso era dito e não questionado, havia uma concordância sutil. De certa forma isso fez parte do meu aprendizado sobre os negros, e não de forma positiva, havia nesta fala a indicação de que o fato de uma pessoa ser negra a marcava, e mesmo que fosse uma boa pessoa em suas ações, ainda o que preponderava era sua cor.
As formas de falar e de reagir em relação às pessoas negras foram sendo ditas de várias formas ao longo da minha construção como ser humano, felizmente houve atitudes que possibilitaram questionar essa categorização danosa. Minha mão sempre foi uma pessoa que fez atos caridosos e de uma forma que me permitiu ver além do preconceito de raça e da condição social. Por exemplo, se alguém aparecia no portão de nossa casa pedindo comida, minha mãe convidava para entrar e comer conosco, se fosse hora do almoço, ou arrumava cuidadosamente a comida para que a pessoa se sentisse bem vinda, valorizada. E, jamais percebi em minha mãe preconceito na forma de ajudar as pessoas devido à sua cor. Essas ações presenciadas me permitiram flexibilizar os danos de discursos claros e sutis de racismo. No entanto, longe de estar livre dessa cultura que nos envolveu e dominou nossa visão de mundo por séculos.
Cansei de ouvir no meio em que vivia, expressões como: “Fez serviço de nego”, “preto de alma branca” e outras que não deve nem ser mencionada, mas havia as que nem sabíamos o peso histórico de dor e sofrimento que traziam e falávamos com a inocência do ignorante, como o termo “criado-mudo”, como senti vergonha quando descobri a origem deste termo! Como pude usar esse termo por tantos anos? Que triste saber que reforcei algo que carrega tanta crueldade. Talvez quem lê não saiba, então vale a pena apresentar aqui a origem deste termo, quem sabe você será mais um na luta para banirmos todas as formas de linguísticas que possam trazer essa carga histórica vergonhosa da escravidão.
Houve uma campanha de marketing em novembro de 2019, da rede de lojas de decoração Etna, que viralizou nas redes sociais, esta campanha chamou atenção para a história do termo “criado-mudo” em busca de conscientização com relação ao racismo. Atores negros contavam a história do nome deste móvel, conforme o texto a seguir.
“Em 1820, os escravos que faziam os serviços domésticos eram chamados de criados. Alguns desses homens e mulheres passavam dia e noite imóveis ao lado da cama com um copo d’água, roupas ou o que mais fosse. Porém, alguns senhores achavam incômodo o fato de eles falarem, e muitos chegavam a perder a língua. Outros sofreram duras punições para “aprender” a nunca se mexer quando houvesse alguém dormindo. Um dia, surgiu a ideia de uma pequena mesinha para ficar ao lado da cama, usada basicamente para apoiar objetos. Esse móvel exercia a mesma função do escravo doméstico e foi chamado de criado. Então, para não confundir os dois, passaram a chamar o móvel de criado-mudo. Dois séculos depois, sem nos dar conta, ainda carregamos termos racistas como esse, mas sabemos que é sempre tempo de mudar e evoluir”. (fonte: https://www.metropoles.com/brasil/direitos-humanos-br/propaganda-de-loja-conta-a-historia-do-criado-mudo-e-viraliza).
A bela iniciativa desta campanha propõe chamarmos apenas de mesa de cabeceira, um termo correto, para eliminar algo que é uma vergonha na nossa história, o preconceito, a escravidão. O sofrimento das pessoas não será eliminado ao não usarmos os termos escravistas, mas é uma forma de fazer refletir sobre a presença destes termos no cotidiano e quanto a sociedade tem uma dívida com os negros e ainda demora para agir no sentido de banir essa injustiça, é preciso termos atitudes concretas em todas as áreas. Na época em que estava na faculdade havia duas amigas negras, uma delas, destaque da Salgueiro e grande profissional de Recursos Humanos de empresas multinacionais, a pouco tempo atrás; a outra chamo de irmã, doutora em Psicologia, e ambas viveram e ainda vivem o racismo todos os dias.
Sim, não é mimimi. Eu não sei o que é entrar no elevador do condomínio onde moro e ouvir alguém dizer com olhar de desprezo que há elevador de serviço, mas minhas amigas ouviram esse desrespeito várias vezes. Numa ocasião recente fomos, eu e Ana, a uma universidade, onde ela é professora, Ana tem doutorado e, naquele momento, eu estava indo ministrar uma palestra, e sou apenas mestre. Chegamos cedo, o estacionamento estava fechado, a Ana disse “Tem o estacionamento dos professores, eu retiro o cone e você estaciona”. Ao estacionarmos veio o segurança, que provavelmente nos observou pelas câmeras, e disse que não podíamos estacionar ali. Eu respondi que o estacionamento para visitantes estava fechado, e ele retrucou: “Mas aqui é só para professores e funcionários”. Ana disse: “Eu sou professora”, e o homem olhou ela de cima a baixo, como se dissesse: “Você?” Depois olhou para mim uma confirmação ou negação. Eu olhei e disse “Sim, ela é a professora eu sou apenas convidada para a palestra”. Então, após a minha fala, o homem acreditou na minha amiga. Triste constatação.
Nós, eu e Ana, temos consciência do quanto a sociedade é preconceituosa e, às vezes, brincamos com as situações, numa tentativa divertida de fazer as pessoas pensarem para além de suas categorizações de mundo racistas e mesquinhas. Nos apresentamos como irmãs, logo pensam que a Ana é adotada e eu sou a filha biológica que foi bondosa com a criança negra. Então, a Ana diz “Minha mãe a adotou”, o olhar confuso das pessoas diante da informação, nos faz pensar como o mundo desta pessoa está engessada em crenças que a limitam de ver o mundo em toda a sua diversidade. É importante frisar, a mãe da Ana realmente adotava crianças, apesar de sua dificuldade financeira.
Essas situações nos mostram de maneira amena as dificuldades e dores das pessoas negras no dia a dia? Certamente estão longe de abranger todas as nuances desta dor, em 28 novembro de 2019, o cientista social e jornalista Gilberto Porcidio fez a seguinte pergunta no jornal O Globo: “O que você faria se o racismo acabasse hoje”? A mesma pergunta foi proposta no Facebook pelas páginas Quebrando o Tabu, e Mídia Ninja. E, as respostas expressam toda a dor de ser negro/negra neste país que teima em esconder a existência do racismo. A seguir, respostas que nos fazem pensar e sentir a urgência de reprogramar nossa mente, nossa forma de ver o mundo e de buscar novas formas de relações que sejam uma real contribuição para um mundo mais justo, mais humano.
“Parava de andar na rua fingindo que estou mexendo no celular só pra mostrar que tenho e não preciso pegar o de ninguém”, respondeu um rapaz. “As pessoas não trocariam mais de calçada quando eu ando, nem mudariam de lugar no ônibus! Será que doeria menos viver?!”, compartilhou outra. Até mesmo o ator Ícaro Silva, da Globo, respondeu ao viral: “Me sentiria seguro vendo carro de polícia”.
Alguns dirão, isso é invenção, é fake News, mas não é, basta que se permita ouvir, observar. Numa simples conversa na hora do almoço com minha filha de 18 anos e meu enteado de 19, foi possível constatar a percepção deles sobre o quanto o fato de serem brancos os protege nas ruas. Eles percebem que a abordagem policial num local público sempre incide primeiramente sobre os negros, e que a violência na abordagem é mais explícita. Culpa dos policiais? A culpa está na estruturação social que se nega a perceber essa realidade, e se nega a mudar isso na formação desses policiais.
A reflexão e abertura para questionar são atitude inteligentes, e favorecem a evolução da humanidade, estou todos os dias aprendendo e me permitindo olhar com seriedade a tudo que me construiu, em alguns momentos sentindo gratidão e, em outros, sentindo a emergência de mudar, de extirpar do meu pensamentos e das minha atitudes tudo aquilo que possa dar continuidade a essa trajetória de sofrimento social.
Enquanto escrevo este texto, quantos jovens negros foram assassinados? No Brasil, somente em 2018, das 6.220 pessoas mortas pela polícia no país, 75,4% (4.690) eram negras, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado. Enquanto, esse texto era escrito jovens foram assassinados, alguns dentro de suas casas, sem direito a defesa, sem direito ao futuro.
Não se engane! Ter amigos negros não te abona de pensamentos e atitudes racistas, lembro que a mais ou menos dois anos, minha filha de 22 anos estavam em casa e assistíamos a um filme. Fiz o seguinte comentário sobre uma atriz do filme: “Que negra linda”. Minha filha me olhou com reprovação e questionou: “Como é mãe? Negra linda?” Confesso que senti um calor tomando conta de mim, senti na hora que realmente meu comentário expressava uma carga inconsciente de racismo. Era uma mulher linda, a referência à cor da pele indicava uma surpresa ela ser negra e ser bela. Desta situação decorreu uma longa e produtiva conversa. Lembro de dizer à minha filha: “Você, como futura professora de história, precisa ser agente de mudança, mas tenha paciência com aqueles que foram imersos num contexto naturalizados no racismo. Mostre com coerência e generosidade nossas mazelas. Todos podemos superar o racismo.
O cérebro humano é dotado de uma capacidade incrível de mudar, o que é denominado de neuroplasticidade. Desta forma, é possível ampliar as percepções do mundo, do outro e das nossas relações. A neurociência tem nos mostrado que viver em harmonia, expressar compaixão, amor, gratidão faz bem, primeiramente a nós mesmos, e promove vínculos saudáveis entre as pessoas. Não é inteligente viver na raiva, alimentando sentimentos de superioridade para apenas um minuto de raiva, seu corpo levará 6 horas para restabelecer o equilíbrio. Já uma situação boa, em quinze minutos seu corpo metaboliza a ocitocina, a dopamina (neurohormonios do afeto e do prazer) produzidas. Vejo isso como sabedoria social, ou seja, você deve se esforçar para ser bom, generoso o tempo todo e fugir dos danos de atitudes agressivas, preconceituosas, pois você pode machucar o outro, mas seu corpo irá sofrer, sua saúde será prejudicada pelos efeitos causados por você.
Que sejamos a cada dia mais conscientes de que a busca por um mundo melhor passa pela consciência de que isso só será possível quando compreendermos que esse mundo precisa ser melhor para todos. Enquanto houver a mesquinhez do preconceito, estaremos atrasando e impedindo essa evolução para todos. E, somos responsáveis, sim, pelo sofrimento dos nossos irmãos negros, esconder a existência do racismo não elimina a realidade, apenas torna você um promotor desse movimento de negação da vida em plenitude para todos.
Alguns dirão: “Você é branca, por que se preocupa com isso, para que perder seu tempo escrevendo sobre algo que não afeta sua vida”? Eu lhes digo que faço isso por mim e por todos as pessoas brancas que deveriam olhar com humanidade para essa realidade que machuca, que mata e que fere. Não seremos dignos de uma vida de paz enquanto fizermos de conta que a dor do outro não existe. Você realmente acredita que o menino Miguel de cinco anos estaria morto agora se fosse branco? Você realmente acredita que se fosse o filho da patroa branca, a empregada negra não estaria presa e sendo apresentada como um monstro?
Escolhi a Psicologia, por ser encantada com o ser humano, acredito na incrível capacidade de mudança, de superação das pessoas, é isso que me faz permanecer na profissão e ter escolhido nos últimos anos atuar em clínica. Em 24 anos de profissão nunca vi alguém se curar do seu sofrimento psíquico adotando atitudes e ideologias de raiva, poder, exclusão e preconceitos. A cura vem do senso de justiça, da ética e do caminho da coerência buscado diariamente.
Quero finalizar este texto agradecendo a todos que de alguma forma me fizeram ser um ser humano melhor,