Os sentidos da maternidade para empregadas domésticas gestantes
* Produzido em 2006.
Resumo :
O presente trabalho faz parte da dissertação de mestrado em Psicologia sobre os sentidos da maternidade para mulheres empregadas domésticas que estavam vivenciando a gestação. Teve como foco a investigação e a discussão sobre os sentidos atribuídos a maternidade por essas mulheres, considerando as questões de gênero, classe social, etnia e contexto histórico. As informações foram obtidas por meio de entrevistas semi-estruturadas e analisadas a partir do aporte teórico de Vygotsky. A realização da pesquisa na região sul do país permite analisar como as mulheres das camadas populares atribuem sentidos a maternidade. Possibilita a reflexão sobre o discurso social, que referencia a maternidade como um momento de beleza e poesia, de cuidados delicados a gestante, como alimentação, descanso físico, enfim a gestação como um período especial de preparação para o nascimento da criança e da função materna. Seria essa a realidade das mulheres das camadas populares.
Palavras chaves: maternidade, mulheres, camadas populares.
Introdução
A maternidade, entendida em seu processo histórico de construção, tem permitido nomear a mulher e mãe de diferentes formas, da inferior à perfeita, de papel secundário na procriação à senhora do seu corpo e do destino de sua prole em gestação. Para Del Priore, no período do Brasil Colonial: “A maternidade servia ainda para preservar as diferenças de gênero, mantinha papéis ancilares tradicionalmente exercidos por mulheres”(1995, p.28):
Os discursos foram lentamente e insistentemente incutindo na sociedade a função exclusiva da maternidade, sendo que essa não poderia estar desvinculada do matrimônio. Del Priore demarca que a tarefa de educar os filhos era responsabilidade da mãe, “[...] por seu comportamento devotado, regrado e piedoso valorizar a vida familiar através de sua relação com seus filhos que as demais possibilidades de convivialidade parecessem vazias” (1995, p.320).
Banditer (1985), em sua obra: “O mito do amor materno”, coloca que até o fim do século XVIII, as taxas de mortalidade infantis eram muitas elevadas, sendo esse um argumento utilizado para explicar o desapego e a indiferença de pais e mães em relação aos filhos gerados. Contudo, a autora pontua que mesmo em séculos anteriores há relatos de mães camponesas que embalavam seus filhos falecidos e que o amor materno não é uma criação do século XVIII e XIX, não sendo, no entanto, uma atitude universal. O amor materno, ou instinto materno pode ser considerado como um sentimento humano, que está sujeitado às relações reais de sobrevivência e regras de uma sociedade; portanto, é um sentimento frágil e imperfeito que de acordo com o contexto sócio-histórico se manifesta ou não.
Para Scavone (2001), que analisa o movimento feminista das décadas de 1960-1970, a experiência da maternidade é a chave para explicar a dominação de um sexo sobre o outro e é reconhecida como um “handicap”, um defeito natural da mulher. Em um segundo momento do movimento feminista, surge a "negação do handicap", a maternidade passa a ser vista como um poder insubstituível, tendo um lugar nas Ciências Humanas e Sociais referenciado como fonte de poder. O terceiro momento é o da "desconstrução do handicap", ou seja, não é a maternidade que determina a posição social das mulheres, mas as relações de dominação que atribuem um significado social à maternidade. Foi com a introdução do conceito de gênero nas ciências sociais que se tornou possível compreender a maternidade como relacional. Esse conceito permitiu abordar a maternidade como símbolo de um ideal de realização feminina, ou como opressão da mulher, ou como poder, uma vez que há inúmeras interpretações de um mesmo símbolo.
A realidade social do século XXI exige a busca constante de novas formas de relações humanas, incluindo-se a maternidade. Este emaranhado de busca de sobrevivência pelas camadas populares e de qualidade de vida pelas camadas médias e altas, leva ao surgimento de uma variedade crescente de tipos de mães. A modernidade e os avanços científicos dos métodos anticonceptivos possibilitaram a alternativa de opção e a escolha reflexiva da maternidade, no entanto, o acesso a essas possibilidades depende, sobremaneira, do acesso às informações. E, as diferenças econômicas, culturais e as relações de gênero estruturam e são estruturadas pelas relações de dominação e exploração. E, nesse contexto o acesso as informações são dificultadas e a maternidade ainda compromete as mulheres, separa-as socialmente dos homens e pode legitimar a dominação masculina.
Esse artigo[1] é um recorte de pesquisa que pretendeu discutir os sentidos que mulheres empregadas domésticas na região sul do Brasil atribuem à maternidade, considerando o contexto histórico cultural.
Para melhor delinear o quadro de pesquisas realizadas sobre as empregadas domésticas, foi realizada busca no Scielo (www.scielo.org.br ) com os descritores: mulher-trabalho doméstico / trabalho doméstico / emprego doméstico / empregada doméstica; no Banco de Teses da Capes (www.capes.gov.br ) e na Biblioteca Virtual da Psicologia (www.pol.org.br ) foi utilizado o descritor “empregadas domésticas”, no mês de agosto de 2003, sendo refeita esta busca no mês de janeiro de 2005. A revisão de literatura demonstrou que a temática maternidade – mulheres das camadas populares, não tem sido pesquisada na psicologia observando-se as especificidades de camadas sociais, gênero, raça e etnia.
A única produção encontrada relacionando especificamente maternidade e empregada e doméstica (Camargo, 1992), refere-se à maternidade da patroa e de como a empregada doméstica se faz presente nessa relação mãe-filho. Considerando que há 5,3 milhões de mulheres nessa ocupação é pertinente considerar a maternidade relacionada a camadas sociais, nessa situação as camadas populares. Refletir sobre a maternidade das mulheres empregadas domésticas é corresponde, pela representatividade no contexto brasileiro[2], a reflexão sobre a maternidade nas camadas populares.
Método
Foram realizadas cinco entrevistas com mulheres que se identificavam como empregadas domésticas e estavam vivenciando sua gestação. Essas mulheres residiam em dois municípios de médio porte da região sul do país. A identificação dessas mulheres ocorreu por meio de informações de Unidades de Saúde. A pesquisadora fez o contato nas residências das empregadas domésticas, elas aceitaram prontamente participar das entrevistas, as entrevistas foram realizadas em horário definido pelas entrevistas em suas residências.
As informações das mulheres entrevistadas foram analisadas mediante a técnica de análise do conteúdo do discurso, com o objetivo de buscar o sentido, ou os sentidos das falas obtidas nas entrevistas. Tomou-se por base a matriz teórica de Vygotsky, que compreende o sujeito como histórico-cultural, e, ainda, considerou-se como suporte as discussões sobre as relações de gênero[3].
As informantes que estavam vivenciando a partir do segundo trimestre de gravidez, nesse estágio de desenvolvimento da gravidez, a mulher experiencia com mais intensidade a presença do feto, por seu tamanho e pela percepção dos movimentos intra-útero do mesmo. É nesse período que a gravidez torna-se mais evidente para os outros (que convivem com as mulheres gestantes, incluindo patroas e patrões) pelo volume do ventre materno.
As informantes: Joana[4], 26 anos, casada, natural da região sul do país, casada, ensino fundamental incompleto (5ª. Série), religião católica, mãe de duas crianças - uma de cinco anos e outra de sete, sexto mês de gestação, trabalhava trabalha como empregada doméstica sem registro em carteira de trabalho. Sua mãe foi “enérgica” na educação, recorria à vara de marmelo para colocar limites nos filhos e na adolescência não permitia que as filhas mulheres saíssem sozinhas.
Maria, 22 anos, casada, natural do interior da região sul do país, ensino fundamental incompleto (4ª. Série), religião católica, mãe de uma filha de um ano e nove meses e de um menino de quatro anos, da sua primeira união conjugal, nono mês de gestação. Diarista não registrada, em três residências fixas, o que caracteriza vínculo empregatício. Sua mãe não era de “ficar corujando os filhos” (sic), mas ensinou-os a trabalhar. O trabalho atravessa sua vida de forma marcante.
Janete, 29 anos, casada, mãe de um filho de dois anos e de uma filha de dez anos que deu para adoção, religião católica, ensino fundamental incompleto (3ª. Série), natural da região sul do país, sexto mês de gestação. Empregada doméstica, com contrato registrado na gestação, gestante no sexto mês de gravidez. Ela percebe e significa sua mãe como uma pessoa forte, inteligente e muito amorosa que procurava incentivar os filhos a serem pessoas de bem.
Marlene, 31anos, casada, está grávida do primeiro filho, religião católica, ensino fundamental completo, natural da região sul do país, sétimo mês de gestação. Empregada doméstica com contrato formal de trabalho efetivado no sétimo mês de gravidez. Sua mãe lhe abandonou com menos de cinco anos de idade.
Lúcia, 23 anos, casada, natural da região sul do país, um filho de três anos, religião evangélica, 6ª. Série do ensino fundamental, cursando supletivo, sexto mês de gestação. Empregada doméstica com contrato registrado durante a gestação. Ser mãe foi sua maior realização, quer ser uma boa mãe como a sua foi para ela.
A construção do sentido da maternidade a partir da relação com as mães.
Falar de mulheres e de mães no sul do Brasil faz com que se tenha claro, como diz Pedro (2001), que não é possível traçar um perfil único que a distinga das demais regiões brasileiras. É preciso considerar, no entanto, as diversidades que atravessam os diferentes períodos históricos, as etnias e classes sociais nessa região.
A formação do sul do Brasil é caracterizada por um grupo racial mais numeroso que o negro, o branco de origem européia, sendo vinculado à pequena propriedade, como nos casos de Maria e Joana, que viviam em áreas rurais. No entanto, a etnia dessas mulheres é denominada por elas de “brasileira”, ou seja, há uma tendência dos grupos populares de perderem a identificação com suas gerações anteriores.
Os depoimentos das informantes acerca de suas mães trazem claramente o quanto essas mulheres consideram a função da mãe como importante e central em suas vidas. São as mães que oferecem referências de trabalho, de educação e de disciplina, bem como são elas que dominam as relações familiares, ditando quando ou onde os filhos podem ir ou não.
Na fala de Joana: “Só que ela era muito enérgica. Ah! Ela agora não, antes ela erguia na vara, mesmo. (...) Era na varinha de marmelo!”, é possível perceber que ela não significa o seu relacionamento com a mãe de forma negativa, mas demonstra que sente que ela exercia uma atitude enérgica. O uso da vara de marmelo era freqüente por famílias de origem européia no sul do país, para demonstrar limites por meio da dor, acreditando-se que, desta forma, a criança não esqueceria o que não deve fazer.
As mulheres das camadas populares no período colonial até o século XV não se adaptavam às características ditadas pelas normas oficiais da sociedade, como a submissão, o recato, a delicadeza e a fragilidade. “Eram mulheres que trabalhavam muito, em sua maioria, não eram formalmente casadas (...) fugindo, em grande escala, aos estereótipos atribuídos ao sexo frágil”. (Soihet, 2001, p. 367). Esse é o caso de Maria que expressa que, graças ao exemplo de sua mãe, teve a chance de se construir como mulher que consegue desempenhar um bom trabalho, uma tarefa doméstica cuidadosa, limpa, e, porque não dizer, eficiente. “Ela também, ela era. Graças a Deus hoje assim, as pessoas tão bem, eu vou trabalhar, todo mundo, trabalha, graças a ela, que ensinou a fazer as coisas bem feitas...”.
A forma de fazer com que os filhos aprenderem a fazer as diversas tarefas bem feitas foi marcante para a constituição de Maria, que, desde os oito anos, sentia-se responsável pelas tarefas domésticas do seu grupo familiar. O mundo da mãe de Maria e, por conseguinte dela mesma, era permeado e significado pelo trabalho. Contudo, demonstra em sua fala, que o contato físico carinhoso e a troca afetiva não era presente na relação com a mãe. Não há uma queixa explícita quanto à ausência de contato físico e carinhoso, mas o que traz na fala pode estar denotando o que ela significa como importante na relação mãe e filhos, ou a falta que ela sentiu desse contato mais próximo com sua mãe. Considerando que há mães que usam a vara de marmelo para colocar limites e educar seus filhos, uma mãe que conversa é sentida como uma mãe boa, mesmo não oferecendo carinho e não pegando no colo. É dessa forma que Maria fala sobre sua mãe: “A minha mãe conversava, era de conversar, assim”.
Quando no grupo familiar o pai não ocupa o papel de provedor, esperado socialmente, há uma sobrecarga para as mães e o sofrimento marca a construção dos filhos. Janete reconhece na mãe uma mulher batalhadora, aquela que tornou possível a sua constituição como uma pessoa capaz de ser mãe e ter uma família.
Nas falas de Lúcia sobre a sua mãe, ela demonstra claramente como as agressões físicas nas relações familiares, entre pais, mães e filhos podem não ser sentida como violências traumatizantes, estando relacionadas com o contexto em que ocorrem, bem como ao significado atribuído pelo grupo familiar e cultural. As palmadas são significadas como parte integrante da relação entre pais e filhos: “A mãe algumas vezes, quando ela conseguia pegar na hora, que nem dizia ela, na hora da raiva batia, mais se passasse um pouquinho daí ela esquecia”.
Costa (2002) indica em seu artigo “Proteção Social, Maternidade Transferida e Lutas pela Saúde Reprodutiva”, que para as mulheres exercerem atividades fora do espaço doméstico elas delegavam e ainda delegam as tarefas de cuidados com os filhos e os afazeres domésticos a outras mulheres. Mesmo nas camadas populares essa prática é usual, segundo a autora essa transferência atualiza desigualdades seculares nos acessos a direitos sociais próprios das relações de poder e subordinação que presidem a montagem dos sistemas protecionistas. (Costa, 2002).
O número de filhos das famílias de origem de Joana, Janete, Maria e Lúcia indicam que, nelas, a quantidade de atividades domésticas e de cuidados necessários com os filhos menores consumia muita energia das mães, o que com certeza repercutia nas formas de relacionamentos dessas com seus filhos. Situação muito diferente das outras informantes foi vivida por Marlene, pois a referência de mãe para essa mulher é marcada pelo abandono. Lembrar da mãe é doloroso, trazendo a sensação de não ter o seu lugar, de não fazer parte de uma família.
Ser mãe é ser conselheira, companheira, é cuidar e... Não abandonar.
Os sentidos construídos sobre o ser mãe pelas mulheres entrevistadas demonstram que as mesmas buscam complementar, melhorar e diferenciar os referenciais vividos na sua história pessoal. Processos de identificação e processos contrastivos parecem presentes, na medida em que as mães fornecem os modelos a serem seguidos ou modificados, ao menos parcialmente.
Joana ao ser indagada sobre o que é ser mãe, repete a pergunta para si mesma, como se naquele momento tivesse percebido a complexidade de ser mãe: “Ser mãe? [Riso]. É uma pergunta muito difícil [Riso]”.Ela busca demonstrar o que para ela significa ser mãe, dizendo que cuidar do filho é um dever dito pela sociedade, mas, para ela, mãe vai além deste papel. “Sei lá, eu acho que ser mãe é ser companheira dos filhos também, porque cuidar todo mundo sabe que tem que cuidar, né. Então tem que ser, aconselhar e... Ser companheira, ser conselheira”. Deve aconselhar e ser companheira, principalmente quando os filhos começam a crescer. Ao falar sobre a mãe que ela deseja ser para as suas filhas, Joana demonstra perceber que se diferencia da sua mãe. No seu entender, ela flexibilizou o modelo materno, mas quando necessário recorre a “umas palmadinhas” e não mais à vara de marmelo usada por sua mãe.
Maria ao falar sobre o que é ser mãe repete a pergunta como uma forma de buscar sentido para esse fazer naturalizado socialmente. Em sua fala anuncia primeiramente que ela não “é de cuidar de criança” querendo dizer que não é carinhosa com suas filhas, o que denomina de “ficar paparicando”. Ressalta, entretanto, que cuida bem e que a maternidade é uma experiência bonita, deixando transparecer que nem todas as mulheres vivenciam esta experiência da mesma maneira, sendo que algumas parecem não conseguir ser mães como “deveriam”: “Ser mãe? Eu não sou de cuidar de criança. Mas eu trato muito bem, dos meus filhos, ficar paparicando. Mas eu acho ser mãe muito bonito... Muito bonito... E acho que, nem todas podem ser mães tão assim...”
A preocupação de Maria com os filhos é evidente, deixando claro que se preocupa em oferecer os referenciais do que é certo e errado socialmente. Ela demonstra que esta busca pode torná-la “chata” perante os filhos, mas para ela o melhor é que os filhos sejam criados como ela foi. Fala que desde pequena ensina sua filha, de dois anos, a cuidar das coisas, a colocar as coisas no seu devido lugar.
Para Janete ser mãe expressa sentidos ambíguos, é emocionante e sofrido, lembrando que, para essa mulher, a sua mãe é maravilhosa e batalhadora, que fez o que pôde para defender os filhos do pai alcoolista e agressivo. Desta forma, para ela, a mãe faz tudo pelo filho, é a responsável pelos caminhos que o filho escolherá na vida. Embora não saiba dizer que mãe quer ser para seus filhos, seu discurso demonstra que ela tem esse referencial: “É uma coisa muito, emocionante, é sofrido, mais eu achei, é muito emocionante... Ah, bem dizer, a mãe faz tudo, que tem que educar...”.
As falas de Lúcia expressam uma imagem culturalmente construída, inclusive com ditos conhecidos como identificadores do papel da mãe: “padecer no paraíso” e “dar a vida pelo filho”. Os sentidos atribuídos por essa mulher estão imbricados com a sua vivência familiar e com a religião evangélica Deus é Amor, a qual ela e o marido professam ativamente. A igreja é o único lugar que o casal freqüenta nos finais de semana. Nessa religião, os valores da família são muitos ressaltados, principalmente aqueles associados à função materna.
Maravilhoso, é a melhor experiência eu acho. É quando o meu filho nasceu eu, por causa do parto, das dores tudo, eu sempre disse que é muito certo esse ditado “ser mãe é padecer no paraíso”, porque você sente dores, mas é o momento mais feliz da vida. Eu... Pra mim a maior felicidade foi o dia que o meu filho nasceu, eu acho que foi o dia mais feliz da minha vida... Tudo [o que uma mãe faz por um filho], eu acho que pelo filho, eu sempre digo, o meu filho é minha vida, pelo meu filho eu troco minha vida sem pensar, por ele eu faço tudo... E mãe é daquele jeito, você pode brigar você pode xingar, você pode fazer tudo, mas os outros ninguém pode fazer nada. Ninguém pode fazer nada que você vira fera aqui. (Lúcia).
A fala de Lúcia é correspondente à sua expressão corporal neste momento. O olhar carinhoso dirigido ao filho denota emoção, ao mesmo tempo em que ela toca seu ventre como um gesto de acariciar este outro filho que está gerando.
O sentido de ser mãe pode estar relacionado à idéia de natureza mais permanente e duradoura da relação com a prole “[...] a qual se contrapõe à relação conjugal, concebida como temporária, provisória e predestinada a terminalidade” (Vargas, 1999, p.96). O amor de filho é sentido como aquele sentimento que nunca acaba, sendo que o amor de um homem pode ser passageiro. Nas camadas populares parecem prevalecer, de acordo com Vargas (id.), o universo familiar e a relevância dos laços com a família de origem.
O sentido buscado sobre ser mãe para Marlene trouxe o silêncio e a angústia, suas expressões traziam dor e sofrimento ao ser levada a pensar sobre a pergunta. Em um primeiro momento poderia ser entendido que isto estaria ligado somente ao fato de ter sido abandonada pela mãe, por não ter tido a vivência como filha. Ao final da sua fala, ela marca que deseja oferecer ao seu filho o amor e o carinho que ela não teve, diferenciando-se da referência de mãe que ela tem: aquela que abandona.
Não se sabe ao certo os motivos que levaram a mãe de Marlene a abandoná-la. Ser mulher e mãe, em meio a relações de gênero desiguais pode tornar a maternidade um fardo. Muitas mulheres se sentem sugadas pelos filhos, se queixam de não ter tempo para o cuidado consigo mesmas. Para muitas mulheres a maternidade possui um sentido que envolve desencanto e esgotamento.
As mulheres entrevistadas, ao falarem da boa mãe, utilizam adjetivos diferentes, porém com uma forte carga de responsabilidade sobre a mulher. A mãe deve ser capaz de transitar em vários papéis para ser considerada boa. Somente Janete ficou um pouco em silêncio, sorriu e iniciou dizendo que não saberia dizer, mas acabou falando que seria aquela mãe que não briga com o filho. Ao mesmo tempo percebe que isto é algo difícil: “Agora eu não sei (risada)... Não sei a boa mãe eu acho que é aquela que não briga... (risada)... Com os filhos. Mas é difícil não ter mãe que brigue?... Mas eu acho que eu sou uma boa mãe pra ele”.
As demais mulheres trazem prontamente uma definição clara sobre o que é ser uma boa mãe, em geral condizente com o que elas colocam sobre o que é ser mãe, endossando adjetivos de responsabilidade, de educar sobre o que é certo e errado, ter amor pelo filho. Ser uma boa mãe não é uma tarefa fácil, não há limites para as responsabilidades atribuídas. A mãe é a responsável pelo filho, desde o nascimento até suas escolhas futuras, quando adultos.
Acho que é educar bem. [O que, que você acha que é educar bem?] Conversar, ensinar sem bater, eu acho... Ensinar as coisas certa e errada, filho também ensina, o filho não responder... Fazer o que a gente manda assim. (Maria).
Uma boa mãe é ser uma mãe amiga, aquela mãe que está ali sempre nas horas ruins, nas horas boas e... (Joana).
Marlene apresentou uma resposta rápida sobre o que seria uma boa mãe, expressando talvez o seu desejo não satisfeito, ou suas fantasias, suas elaborações sobre como seria uma boa mãe. Acentua o aspecto da responsabilidade, ou seja, uma mãe não abandona, deve ter aquele amor que ela não obteve após seus quatro anos. Antes desse período nada lhe foi dito sobre ela e a relação com a mãe. “Uma boa mãe tem que, tem que ter responsabilidade, tudo, tem que, depois você está com o filho, você tem que dar atenção pro filho tudo, cuidar, ter aquele amor”.
Mãe ideal: “Ai meu Deus, será que existe?”
Joana aponta para um questionamento que leva à reflexão sobre a possibilidade do alcance da perfeição. Diante de tantas atribuições, responsabilidades e variabilidades da realidade, ela conclui que a mãe ideal não é possível. “Ai meu Deus, será que existe? [Risos]... Eu não sei... Eu acho que não é possível essa mãe ideal”.
A intensidade das exigências em relação às funções maternas torna o ideal dessa função algo inacessível para Joana e as demais mulheres informantes dessa pesquisa. Não há como não cometer alguma falha dentro do rol de exigências para se atingir a perfeição. (Banditer, 1985).
No sul do Brasil essas imagens idealizadas tornaram-se freqüentes a partir da segunda metade do século XIX, sendo os jornais os responsáveis pela divulgação de modelos de comportamento, focalizando com maior intensidade as mulheres, para torná-las mais civilizadas de acordo com os parâmetros europeus (Pedro, 2001).
Janete opta por não responder essa pergunta, deixando em aberto o sentido que ela atribui a essa mãe ideal. “Ai, agora eu não posso te responder. [Risadas]”.
O sentido atribuído por Maria a uma mãe ideal é diferenciado das suas práticas e das de sua mãe em sua educação. Preocupar-se “só com o filho” é o que ela aponta como uma mãe ideal. É interessante perceber que há contradições presentes em suas falas, não sendo possível verificar o grau de percepção que Maria tem dessas contradições. “Eu acho que mãe ideal, eu acho ser aquela que fica o dia inteiro ali ao redor corujando, no fundo acho que é isso a mãe ideal, aquela que não se preocupa com nada senão com o filho”.
Lúcia fala que essa mãe ideal ela “nunca” vai conseguir ser, porque segundo ela “se acerta de um lado e erra-se do outro”. Essa fala aparece como uma cobrança, pelas vezes em que não consegue atingir o que ela idealiza para o papel da mãe. Deixar o filho na creche durante o dia para que possa trabalhar, pode ter um sentido de estar errando como mãe, ou quando perde a paciência, ou deixa de fazer o que ela julga como responsabilidade de mãe. Mas, ela elabora uma definição para atribuir sentido a uma mãe ideal. “Eu acho que perfeita nunca mais eu vou conseguir ser, porque a gente como mãe acerta de um lado, erra do outro, mas eu acho que o ideal é passar a vida com o seu filho, cuidando e fazendo tudo o que é necessário por ele. (Lúcia)
A fala de Lúcia remete ao que Del Priore (1995), comenta sobre o período colonial até o império, com relação ao amor materno, que se encontra marcado em testamentos da época. Segundo a autora, as mães quando vivenciavam a proximidade da morte imploravam às irmãs, comadres e avós, que “olhassem por seus filhinhos”, demonstrando o temor e a apreensão com relação ao destino dos seus filhos.
Banditer (1985), ao final de sua obra, propõe que é necessário estar atento para não se falar de instinto materno, mas identificar que há uma fabulosa pressão social para que a mulher se realize na maternidade. Poder ser mãe não significa que a mulher deve ser apenas mãe e que a maternidade seja a única possibilidade de felicidade.
Considerações Finais:
As falas dessas mulheres das camadas populares demonstram que, a despeito dos movimentos feminista e das discussões de gênero, a função de cuidar e educar os filhos é vista como própria das mulheres e é central na trajetória de vida das informantes. A possibilidade do trabalho remunerado está vinculada às necessidades de sobrevivência do grupo familiar, sendo centrais as dos filhos. O abandono do trabalho remunerado também está ligado às necessidades de cuidados dos filhos.
A maternidade tornou-se ao longo do tempo norma para a identidade feminina, sendo que num contexto social em que não há muitas possibilidades para os jovens, resta às mulheres a construção da identidade junto ao grupo social e, nas suas relações mais próximas, o papel de mãe. Ser mãe confere respeito social perante o seu meio, no entanto é acrescido de responsabilidades que colocam na mulher o poder e o dever da condução da sociedade quanto aos aspectos relacionais e morais.
Ser mãe é sentido como um “sofrer no paraíso”, com a responsabilidade de conduzir a educação moral dos filhos, bem como se atribui à mãe o possível insucesso do futuro da sua prole. Ser mãe num contexto social desfavorável, de injustiça social, e conseqüentes dificuldades de acesso aos serviços básicos de assistência social, tornam o papel da mãe, um lugar repleto de angústias devido às discrepâncias entre o que é sentido como atribuições, funções de uma boa mãe e a possibilidade de concretização desses significados na relação cotidiana com os filhos.
Os pais aparecem nas falas, porém em uma posição mais periférica e no sentido de provedores, ainda distantes de divisão eqüitativa de tarefas. Corroborando com Costa (2002), as mulheres têm reivindicado dimensões femininas na masculinidade, ou seja, elas têm cobrado maior participação dos seus companheiros, ou maridos no cuidado com os filhos e execução de tarefas domésticas. Mas não conseguem perceber o pai como não sendo provedor e, dessa maneira, reforçam o lugar do homem em desempenhos desiguais nas tarefas cotidianas.
Os sentidos construídos pelos sujeitos não estão presos somente em suas vivências concretas, mas em todas as formas atribuir sentido ao que se vive, o que se percebe no outro, suas fantasias e seus desejos. Dessa maneira, o sujeito constrói sentidos únicos e em alguns casos descolados das vivências concretas da realidade, posto que associados a idealizações.
Costa (2002), indica que as atribuições da paternidade e da maternidade são construções de sentidos diferenciados. As mulheres referem-se à maternidade como um desejo que sempre existiu, como se elas fossem se constituindo mães ao longo de suas trajetórias de vida, uma experiência de continuidade, de repetição e de realização de um plano elaborado desde o início da construção da sua subjetividade feminina. Em contrapartida, os homens concebem a paternidade no momento em que vivenciam o casamento, um desejo que amadurece com tempo, é um projeto para o futuro, que visa a descendência, diferentemente das mulheres que vêem na esterilidade a impossibilidade de reafirmar sua feminilidade e se desesperam.
Para Bruschini (1994, p.31), “Uma família igualitária, com uma divisão de trabalho que leve os homens a partilhar com as companheiras tanto as responsabilidades profissionais quanto as familiares e domésticas, é condição para a conquista da cidadania pelas mulheres”. É preciso considerar que a maternidade possui sentidos diversos e complexos na construção de cada sujeito e, por assim ser, torna-se necessário que a psicologia em sua prática considere os aspectos históricos, sociais, culturais e étnicos que exige análises para além dos postulados teóricos sobre a maternidade que a colocam em um lugar estagnado. As falas dessas mulheres das camadas populares demonstram que, a despeito dos movimentos feminista e das discussões de gênero, a função de cuidar e educar os filhos é vista como própria das mulheres e é central na trajetória de vida das informantes. A possibilidade do trabalho remunerado para essas mulheres está vinculada às necessidades de sobrevivência do grupo familiar, sendo que as necessidades centrais são dos filhos. O abandono do trabalho remunerado está ligado às necessidades de cuidados dos filhos.
Referências Bibliográficas:
Banditer, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Bruschini, C. (1994). O trabalho da mulher brasileira nas décadas recentes. Em: Revista de Estudos Feministas, número especial, (p.175-199). Camargo, H.M. (1997), Empregada é a mãe - das dinâmicas da maternagem para uma maternagem dinâmica.Dissertação de Mestrado não publicada. Pontifícia Universidade Católica. UC, São Paulo - SP. Costa, S. G. (2002), Proteção Social, Maternidade Transferida e Lutas pela Saúde Reprodutiva.Em: Revista estudos feministas. 10 (2), pp.301-323. Coutinho, Maria L.R.(1998) A análise do discurso em Psicologia: algumas questões, problemas e limites. Em: Souza, Lídio de; Freitas, Maria de F. Q. de & Rodrigues, Maria M. P.(organizadores). Psicologia: reflexões (im)pertinentes.(p.316-345), São Paulo: Casa do Psicólogo. Del Priore, M. (1995). Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. (2ed.) Rio de Janeiro: José Olympio. Pedro, J. M. (2003). As representações do corpo feminino nas práticas contraceptivas. Abortivas e Infanticídio – Século XX.Em: Matos, M. I., Soihet (org).O corpo feminino em debate. (pp.157 –176). São Paulo. Editora UNESP. Scavone, L. (2001) A maternidade e o feminismo: diálogo com as ciências sociais. Em: Cadernos Pagu. 16, (pp.137-152). Soihet, R. (2001). Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. Em: Del Priore (org). História das mulheres no Brasil.(5ª.ed). São Paulo. Contexto. Vargas, E. P. (1999). A figueira do inferno: os reveses da identidade feminina. Em: Revistas de Estudos Feministas. v 7,(1/2), pp.89 – 108. [1] A busca por compreender o sentido atribuído à maternidade por mulheres empregadas domésticas da região sul do país foi o objetivo dissertação de mestrado em Psicologia: Fediuk, Marínea Maria. Empregadas Domésticas Gestantes: os sentidos da Maternidade. Dissertação de Mestrado.Universidade Federal de Santa Catarina, 2005
[2] Segundo a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) em 2001, haviam 5,3 milhões de empregadas domésticas sendo que, deste contingente de trabalhadoras, somente 25,88% possui contrato formal de trabalho. De 2001 para 2002, a categoria de posição na ocupação que menos cresceu foi a dos trabalhadores domésticos.
[3] O termo gênero, além de um substituto para o termo mulheres, é também utilizado para que qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente informação sobre os homens, que um implica o estudo do outro. (...) Além disso, o termo “gênero” também é utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. Seu uso rejeita explicitamente explicações biológicas, como aquelas que encontram um denominador comum, para diversas formas de subordinação feminina, nos fatos de que as mulheres têm a capacidade para dar a luz e de que os homens têm uma força muscular superior. Em vez disso, o termo gênero torna-se uma forma de indicar construções culturais – a criação inteiramente social de idéias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres. (Scott, 1990, p.75).
[4] Os nomes das informantes são fictícios.